quinta-feira, 7 de junho de 2007

Da sala de aula à Psicopedagogia Clínica

Texto originalmente escrito em 01/janeiro/2000. Uma versão atualizada deste artigo foi publicada sob o título Da sala de aula à psicopedagogia clínica, em PINTO, Maria Alice Leite (org.). Psicopedagogia diversas faces, múltiplos olhares, SP, Olho D'água, 2003: 66-73.

Professora de Língua Portuguesa há 17 anos, com trabalho dedicado exclusivamente à rede estadual de ensino, em 1988/89, sentia-me frustrada diante de tantas tentativas em busca de uma qualidade de ensino que conduzisse o aluno a uma aprendizagem significativa que o preparasse para o exercício da cidadania. A política educacional, então vigente, não muito diferente da atual, não objetivava uma educação com estruturas pedagógicas definidas e sérias, que contemplasse professor e aluno. A educação acontecia como discurso de palanque político e não como necessidade de transformação social. A reprovação e a exclusão escolar eram realidades e, num esforço de minorias, as possibilidades de reversão desse quadro, pouco satisfatórias.

No Estado de Santa Catarina, uma Nova Proposta Curricular, cuja concepção histórico-cultural ou sócio-histórica de aprendizagem, começava a ser apresentada para a comunidade escolar como um todo. Era uma Proposta diferente, que preconizava uma educação transformadora, pressupondo o resgate do conteúdo científico através da escola, tendo como ponto de partida a realidade social e concreta do aluno, conduzindo ao entendimento crítico do funcionamento da sociedade. Porém, tal Proposta, embora bastante convincente, deixava-nos ansiosos, pois sabíamos que a leitura dessa nova concepção teórica seria lenta e dependeria de uma continuidade gradual e constante, além de muita vontade política. Em meio a esse contexto, as insatisfações profissionais cresciam e a busca por uma valorização de um trabalho com resultados mais satisfatórios que nos mostrasse a aprendizagem real do aluno, era uma constante.

Em outubro de 1991, nasceu o Pró-Saber, Centro Especializado em Educação, idéia latente já há alguns anos. Queríamos autonomia profissional para trabalharmos as dificuldades da aprendizagem, causas da repetência e exclusão escolar, tão comuns e tão presentes na rede pública de ensino. O Pró-Saber, com o objetivo de buscar alternativas para a solução dos problemas educacionais, especialmente aqueles do fracasso escolar, começou suas atividades oferecendo acompanhamento nas tarefas escolares e aulas particulares em conteúdos específicos das diferentes disciplinas. Depois de alguns meses de trabalho, constatamos que certas dificuldades de aprendizagem não podiam ser solucionadas somente através desse tipo de atendimento. Apenas para aulas particulares ou um simples acompanhamento de tarefas, não satisfaziam as exigências momentâneas. As dificuldades tinham raízes mais profundas.Fazia-se urgente buscar outra formação que nos possibilitasse conhecer o sujeito de forma integral e numa concepção de ensino-aprendizagem que possibilitasse um método pedagógico de aprendizagem significativa.

O centro de Estudos Psicopedagógicos de Curitiba, fundado em 1988 e ligado ao Centro de Estudos Psicopedagógicos de Buenos Aires, possibilitou-nos a formação que precisávamos. Iniciamos, assim, em 1992, o curso de Psicopedagogia, formação de três anos, em nível de Pós-Graduação, numa linha teórico-técnica, cuja corrente de pensamento é a Epistemologia Convergente de Jorge Visca, Psicólogo Social formado pela "Escuela Privada de Enrique Pichon-Rivière", fundador do Centro de Estudos Psicopedagógicos de Buenos Aires e Brasil (Rio de Janeiro, Curitiba e Salvador), e, também, docente responsável pela nossa formação psicopedagógica.

"A psicopedagogia nasceu como uma ocupação empírica pela necessidade de atender
as crianças com dificuldades na aprendizagem, cujas causas eram estudadas pela
medicina e psicologia. Com o decorrer do tempo, o que inicialmente foi uma ação
subsidiária destas disciplinas, perfilou-se como um conhecimento independente e
complementar, possuidor de um objeto de estudo (o processo aprendizagem) e de
recursos diagnósticos, corretores e preventivos próprios." (VISCA,
Jorge,1987:7).

A psicopedagogia estuda as características da aprendizagem humana: como se aprende, como essa aprendizagem varia evolutivamente e está condicionada por vários fatores, como se produzem as alterações na aprendizagem, como reconhecê-las, tratá-las e preveni-las. Como outras áreas da saúde, a psicopedagogia implica em um trabalho a nível preventivo e curativo. Na função preventiva, cabe ao psicopedagogo atuar nas escolas através de assessoria pedagógica ou em cursos de formação de professores, esclarecendo sobre o processo evolutivo das áreas ligadas à aprendizagem escolar (perceptiva motora, de linguagem, cognitiva, emocional), auxiliando na organização de condições de aprendizagem de forma integrada e de acordo com as capacidades dos alunos. O trabalho do psicopedagogo, em nível curativo, é dirigido às crianças, adolescentes e adultos com distúrbios de aprendizagem.

No trabalho clínico, o psicopedagogo busca não só compreender o porquê de o sujeito não aprender algumas coisas, mas o quê ele pode aprender e como. A busca desse conhecimento inicia-se no processo diagnóstico, momento em que a ênfase é a leitura da realidade daquele sujeito para então proceder a intervenção, que é o próprio tratamento ou o encaminhamento.

A Epistemologia Convergente, segundo Jorge Visca, tem suas bases nas escolas psicanalítica, piagetiana e psicologia social de Enrique Pichon Rivière.Para melhor situar a Psicopedagogia na sua evolução histórica, no seu artigo Os Caminhos da Psicopedagogia no Terceiro Milênio, o Prof. Jorge Visca faz um balanço, analisando o passado da Psicopedagogia, enfocando três grandes dimensões: a teórica, a técnica e a institucional, e diz que o projeto para o futuro está constituído por um conjunto de idéias que podem formar um programa de revisão de conceitos e técnicas já estabelecidos como assim também a construção de novos conceitos e novas técnicas. Segundo Visca, anterior à Epistemologia Convergente, é possível reconhecer um período pré-científico que vai aproximadamente até o século XVIII, onde não existia um claro conceito de aprendizagem e de dificuldades de aprendizagem, visto que eram tidas como doença mental que, por sua vez, era explicada por uma concepção demonológica ou sobrenatural.

O período seguinte vai até fins do século XIX e começo do século XX. É uma etapa de transição entre as explicações pré-científicas e as científicas. Neste período, Itard e Pinel propuseram uma explicação ambiental e outra biológica para a parada do desenvolvimento.

A etapa posterior começa com o nascimento de inúmeras escolas psicológicas contemporâneas: o estruturalismo de Wundt e Titchner, a psicanálise de Freud, o funcionalismo de Dewey e Woodwort, a reflexologia de Pavlov; a Gestalt de Wertheimer, Koehler e Koffka, a topologia de Lewin, o behaviorismo de Watson e os subprodutos psicológicos da escola piagetiana. Todas estas escolas consideravam que "sua causa" - o inconsciente, o estímulo, a estrutura, etc. - era causa única e suficiente para explicar os problemas de aprendizagem.

O último período inicia-se aproximadamente durante a década de 30 e pode ser chamado de período de integração de idéias; os cientistas abandonam suas posições irredutíveis e mergulham no conhecimento de outros, possibilitando uma tomada de consciência das limitações, das descrições e explicações das distintas correntes, gerando um movimento integracionista.

Entre os integracionistas, destacamos Jorge Visca que, nas décadas de 70 e 80, dedica-se à investigação clínica e à produção de escritos, elaborando assim o paradigma denominado Epistemologia Convergente, que consiste na assimilação recíproca de contribuições da Psicanálise, da Escola Piagetiana e da Psicologia Social. Visca conseguiu organizar um modelo de análise efetivamente dinâmico, permitindo compreender a interação dos aspectos cognitivos e afetivos no processo de aprendizagem.

Na epistemologia convergente, todo o processo diagnóstico é estruturado de modo a observar a dinâmica de interação entre o cognitivo e o afetivo, de onde resulta o "funcionamento do sujeito". Os instrumentos conceituais que elaborou para a formulação desse paradigma teórico se constituiem em:

  • o esquema evolutivo da aprendizagem concebe a aprendizagem como uma construção, intrapsíquica, com continuidade genética e diferenças evolutivas resultantes das precondições energético-estruturais do sujeito e as circunstâncias do meio;
  • o processo diagnóstico consiste na série de passos por cujo intermédio se realizam o reconhecimento, o prognóstico e as indicações. Esse processo possibilita uma imagem do sujeito mediante construção de um modelo a partir dele mesmo;
  • a matriz do pensamento diagnóstico individual é instrumento conceitual "capaz de representar os distintos estados (normais ou patológicos) do objeto de estudo sem que perca sua unicidade.

Para tanto, consta de três partes: o diagnóstico propriamente dito, o prognóstico e as indicações.

  • o modelo nosográfico classifica os estados patológicos da aprendizagem conforme a base de sua descrição e explicação em três níveis: o semiológico (sintomas objetivos e subjetivos), o patogênico (estruturas e mecanismos que provocam a sintomatologia) e o etiológico (sua causas históricas);
  • os critérios de seleção ou EOCA (entrevista operativa centrada na aprendizagem) consiste em uma consigna inicial e intervenções do entrevistador;
  • processo corretor é o conjunto de operações clínicas por cujo intermédio se facilitam a aparição e estabilização de condutas entre um sujeito que acompanha o processo e outro que sofre ativamente, cofigurando ambos um sistema em devenir (movimento pelo qual as coisas se transformam).

Para Visca, esses seis modelos tentam ser uma instância de integração das concepções psicanalítica e piagetiana que transcenda o estudo do aspecto afetivo e cognitivo em separado, permitindo uma visão integradora, mais ampla e profunda. Como se pode constatar, o fazer da Psicopedagogia é uma área de conhecimento e de atuação profissional bastante recente, facilitando conhecer a forma de aprender do sujeito. Todo diagnóstico psicopedagógico é uma investigação, é uma pesquisa do que não vai bem com o sujeito em relação a uma conduta esperada. É o esclarecimento de uma queixa, do próprio aluno, da família, da escola. Trata-se do não-aprender, do aprender com dificuldade ou lentamente, do não-revelar o que aprendeu, do fugir de situações de possível aprendizagem. Nessa investigação, pretende-se obter uma compreensão global da forma de aprender do sujeito e dos desvios que estão ocorrendo nesse processo.

A técnica de investigação diagnóstica começa com a Entrevista Operativa Centrada na Aprendizagem , de onde se extrai um primeiro sistema de hipóteses e se define a linha de pesquisa. São então selecionadas as provas piagetianas para o diagnóstico operatório, as provas projetivas psicopedagógicas e outros instrumentos de pesquisa complementares. A partir da análise desses dados, elabora-se o segundo sistema de hipóteses e organiza-se a linha de pesquisa para a anamnese (entrevista com os pais), e entrevista com a escola (professor e orientação escolar). Por fim, o psicopedagogo, conclui seu terceiro sistema de hipóteses, levantando as causas das dificuldades na aprendizagem e, posteriormente, fazendo a devolutiva aos pais e ao sujeito, indicando-se os agentes corretores ideais e possíveis. É importante destacar que no processo diagnóstico, dependendo do caso, tem a interferência de outros profissionais, como: médico neurologista, psicólogo, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional. Portanto, exige um trabalho multidisciplinar.

A formação psicopedagógica nos possibilitou encontrar o caminho que procurávamos para atingir a raiz das dificuldades na aprendizagem apresentadas pelos nossos alunos. Os postulados básicos da Epistemologia Convergente começaram a ampliar nossa visão do ser cognoscente, objeto de estudo psicopedagógico, pois exigiu-nos muita leitura e aprofundamento das teorias relacionadas com as ações de aprender e ensinar, não apenas no sentido da prática didático-pedagógica, mas no substrato epistemológico que delas se origina para a formação do sujeito "aprendente".

Nossa atuação em sala de aula, diante dos problemas relacionados com as dificuldades de aprendizagem e o fracasso escolar, mudou significativamente, desmistificando certas crenças e valores relativos ao ensino escolar. Por outro lado nos possibilitou, no Pró-Saber, uma atuação clínica profissional, pois através do diagnóstico psicopedagógico pudemos identificar os desvios e os obstáculos básicos no modelo de aprendizagem do sujeito, que o impediam de aprender dentro do esperado pelo meio social. Fundamentalmente, essa nova atitude favoreceu a ressignificação de nossa atitude profissional, tornando-a mais subjetiva.

A Epistemologia Convergente, segundo Jorge Visca, traz desafios para o terceiro milênio: aperfeiçoar os resultados alcançados pela definição mais inclusiva e profunda do seu objeto de estudo, a aprendizagem e os recursos diagnósticos e abordar as eventuais provocações do futuro. A prática psicopedagógica, desenvolvida ao longo desses anos no Pró-Saber, tem demonstrado resultados significativos no resgate da estrutura cognitiva dos sujeitos com dificuldades de aprendizagem. Muitos casos foram atendidos, causas das dificuldades detectadas e o processo corretor aplicado com resultados extremamente satisfatórios, mesmo em casos mais críticos, com diagnóstico de transtornos neuronais, deficiência mental, distúrbios comportamentais, motores, hiperatividade. Destacamos muitas queixas de dificuldades na aprendizagem, cuja causa está relacionada a procedimentos pedagógicos e avaliativos, pelo despreparo de professores, metodologias e programas de ensino inadequados.

Por isso, hoje, nosso trabalho acontece em parceria com as escolas, pois o processo corretor só terá êxito se houver um trabalho conjunto e articulado com a família e a instituição escolar. Com certeza, para o terceiro milênio, também a instituição escolar deverá contar com mais este profissional, o psicopedagogo, pois é um trabalho que não favorece unicamente o aluno, mas também a instituição e o professor, já que estes elementos estão fortemente inter-relacionados. O diagnóstico psicopedagógico não se refere apenas à prescrição de orientações para alunos em particular, mas aborda outros assuntos de caráter mais geral derivados de discussões sobre alunos com dificuldades, do desenvolvimento das orientações e, também, da análise conjunta de dúvidas ou questionamentos sobre assuntos didáticos. Desta forma, a psicopedagogia, além de ajudar a resolver problemas, intervém de uma forma mais preventiva e institucional, evitando o aparecimento de outros.

Nesta caminhada feita até aqui, ao longo destes 26 anos de atuação na educação, acreditamos que a visão psicopedagógica possibilitou uma mudança de postura frente à aprendizagem assistemática e sistemática, impulsionando o nosso desejo de buscar novas fontes constantemente, fazendo-nos sentir cada vez mais sujeitos históricos aprendentes, capazes de enfrentar desafios, abrir novos espaços de conquistas, tendo como meta fundamental um Ser mais Humano para o novo milênio.


Referências Bibliográficas

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VISCA, Jorge. Artigo: Os Caminhos da Psicopedagogia no Terceiro Milênio, 1999.

WEISS, Maria Lúcia L. Psicopedagogia Clínica, Porto Alegre, Artes Médicas, 1992.

Um comentário:

Anônimo disse...

Li seu texto, e gostei da sua fundamentação baseada em Visca.

Verônica-Salvador-Bahia